11.04.18

Cidadãos de segunda categoria


Tenho muita dificuldade em entender motoristas que não valorizam os pedestres, mesmo que seja por egoísmo. Afinal, um pedestre pode representar um carro a menos disputando espaço neste trânsito maluco que temos em grandes cidades. E sabemos que eles não são poucos: segundo a ANTP, 36,5% das viagens no país eram feitas a pé em 2014. Os ciclistas representavam outros 4,1%, somando 40,6% das viagens em transporte não motorizado, ou transporte ativo. Já imaginou se esse povo todo decidisse se deslocar de carro também? 

A má notícia é que os números do transporte individual vêm crescendo e hoje respondem por 31% da divisão modal. Roberto da Matta, antropólogo, analisa muito bem outros aspectos da divisão dos modais em sua publicação ‘Fé em Deus e pé na tábua’ e conta como desde os tempos da colônia os pedestres eram hierarquicamente inferiores e deveriam abrir caminho para as carruagens da época, liberando o leito carroçável para que os nobres pudessem passar. 

O impressionante é que, até hoje, os pedestres só parecem ter vez se não estiverem atrapalhando os carros. E não são apenas os motoristas que pensam assim. Quem nunca viu um pedestre dando aquela corridinha para não incomodar o motorista que, gentilmente, o “deixou” atravessar na faixa de pedestre, onde a prioridade era dele mesmo? 

É só a gente prestar atenção para registrar incontáveis exemplos, todos os dias. Não bastasse o espaço público ser mal dividido, dedicando áreas ínfimas e em péssimas condições de implantação e manutenção para os pedestres, estes também precisam lidar com todas as questões culturais de nossa sociedade. Se este pedestre tiver ainda dificuldades de locomoção, a vida fica mais complicada. 

Fico imaginando um cadeirante andando sozinho pela cidade. Qual será a distância que ele conseguiria percorrer? Se for possível chegar até a esquina – enfrentando barreiras, postes, rampas com inclinação lateral, degraus – ele precisa contar com a sorte de encontrar ali uma rampa de acessibilidade e, ainda, rezar para que ela não esteja bloqueada por um carro. 

Hoje passei por esta situação com um carrinho de bebê. Havia um carro de uma seguradora que foi estacionado atrás de outro automóvel ao qual prestava socorro, impedindo a passagem de pedestres junto à faixa. Eu poderia desviar, descer com maior dificuldade na esquina (de ré, porque de frente o carrinho tomba devido à altura da guia ou meio fio), arriscar a travessia porque dessa forma os motoristas não têm tempo de reação pela falta de visibilidade. Tudo isso em míseros cinco segundos, tempo que dura o travessia dos pedestres que esperam por uma próxima chance durante noventa segundos. 

Mas nessa hora, pensei “pode não ter sido por mal, vou pedir ao motorista que dê licença para que não apenas nós, mas todos possam passar”. E pedi, com educação que ele retirasse o carro. Ele o fez, imediatamente. Assustadoramente, a dona do carro estragado, que parecia ter uns quarenta anos, veio em defesa do prestador de serviço: 

 - Você não está vendo que o meu carro está parado aqui? Ele está trabalhando! 

Em choque, respondi: 
 - Sim, mas o carro dele não está com problemas. Ele pode estacionar em outro lugar e vir prestar atendimento aqui. Se o seu carro não pode se mexer, tudo bem, mas o dele pode. 
 - Mas fica mais difícil para ele (que já havia estacionado o carro em outro lugar e trabalhava normalmente sob o capô do carro dela).  
 - E desse jeito fica impossível para o pedestre. Por que você acha que teria prioridade em relação a nós, bem na faixa de pedestres? 

Ela resmungou mais algumas coisas, disse algo tipo “pronto, pode parar de falar porque ele já saiu e você conseguiu o que quis.” Queria ter a palavra final e assim teve. 

Eu fui embora, com um misto de sensação de dever cumprido, de não me omitir nas lutas que precisamos travar para conquistar o espaço que merecemos, mas também um pouco incomodada com o egoísmo dela e pelo fato do meu filho ter presenciado aquela discussão. 

De cabeça fresca, acho que vivências como essa também prestam o papel de educar estes pequenos cidadãos. Mostrar a eles que os pedestres precisam poder respeitar o Código Brasileiro de Trânsito sem morrer.

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  Maria Teresa Diniz     urbitandem@urbitandem.com.br